Frases do filosofo Marsílio Ficino
Ficino é um pensador central da renascença porque representa muito bem o espírito dessa época, que consiste em desenvolver a autonomia e a originalidade de forma combinada com a erudição. O estudo da filosofia antiga, no caso de Ficino o pensamento de Platão e de Plotino, não tem como objetivo a reprodução dogmática dos gregos, mas pretende ser uma ocasião de abertura do pensamento que se oponha às sínteses fechadas da Idade Média. Nesse sentido, quando dizemos que Ficino é um platônico, não se deve entender por isso que ele teria sido um discípulo fiel do filósofo grego e que suas obras consistiriam numa exposição literal de Platão. O que temos em Ficino é um platonismo renovado e, muito mais do que uma fidelidade literal, uma inspiração e um estilo de pensar. Isso se manifesta não apenas na interpretação da filosofia platônica, na qual entram muitos outros elementos além do puro platonismo, mas também no recorte de temas que atraem a atenção de Ficino. De qualquer modo, não se poderia entender Ficino fora do contexto da renovação dos estudos platônicos na renascença. O platonismo, com as transformações a que o submete o pensamento original de Ficino, é a base e o guia constante de sua filosofia.
É claro que se tem de levar em conta, então, o conhecimento profundo que ele tinha de toda a obra platônica, o que o distingue na sua época, pois no século XV Aristóteles ainda dominava a cena filosófica. O estudo aprofundado de Platão tornou-se possível através da fundação da Academia de Florença, sob o patrocínio de Cosimo de Medici em 1462. Esse mecenas colocou à disposição de Ficino e dos demais integrantes da Academia um número muito grande de manuscritos, tanto de Platão quanto de outros autores, o que permitiu o desenvolvimento de estudos a partir das fontes originais. Ficino dedicará a maior parte de sua vida à tradução da obra de Platão para o latim, tendo feito o mesmo com os escritos de Plotino. Assim adquiriu grande familiaridade com o platonismo, tanto o original quanto o neo-platonismo, e essa foi a condição fundamental para a realização de sua obra propriamente teórica, a Teologia Platônica, em que o tema principal é a imortalidade da alma. É muito importante considerar, portanto, as condições históricas que permitiram na época um trabalho independente das diretrizes estritas da Igreja, o que somente pôde acontecer graças ao mecenato, sem o qual Florença, por ex., não se teria transformado num centro cultural comparável a Atenas na antiguidade e a Paris na Idade Média. Os Medici desempenham nesse processo de laicização da cultura um papel extremamente relevante; foram eles que apoiaram, financeira e politicamente, as irmandades laicas, agremiações culturais em que se reuniam os estudiosos não ligados ao estamento clerical. O perfil dessas associações estimulava o desenvolvimento de uma cultura individual em consonância com a reivindicação de autonomia intelectual característica da renascença. O que se costuma chamar de individualismo moderno tem nesse período e nessas circunstâncias a sua gênese.
A concepção geral que Ficino tem do universo segue basicamente as linhas do pensamento neo-platônico, no qual Ficino introduz elementos cristãos, seguindo dessa forma também o estilo agostiniano de pensamento. O universo está organizado hierarquicamente: o ponto mais elevado e a origem de tudo é Deus; segue-se uma esfera espiritual denominada de espírito angélico; em seguida a alma racional; depois a qualidade e finalmente o corpo ou matéria. São cinco níveis de realidade dispostos em escala decrescente do divino à materialidade. Mas pode-se observar que a alma racional ocupa uma posição intermediária que, se abstrairmos Deus como realidade máxima, pode ser vista como central, já que se situa entre o espírito angélico, que lhe é superior, e a qualidade e a matéria, níveis inferiores. Essa modificação do esquema plotiniano é intencional. Dentre as realidades que derivam de Deus, Ficino confere relevância à alma racional, humana, concebida como individual. Notemos que em Plotino é a alma do mundo, entidade cósmica, que ocupa a posição imediatamente inferior ao Uno e à Psiquê ou intelecto. Na hierarquia de Ficino não há alma do mundo, mas sim as almas individuais. Isso se deve, em parte, à intenção de incorporar o elemento cristão essencial, que é a alma imortal; mas certamente se deve também ao privilégio que passa a ter em Plotino, e no contexto da renascença, a idéia de indivíduo, dotada agora de uma importância que antes não lhe era conferida. A alma individual não é uma expressão singular da alma do mundo, mas uma realidade metafísica independente. Assim ela passa a ter uma relação mais direta com a divindade, sem a mediação da alma do mundo, o que lhe dá maior dignidade. A alma tem a sua imortalidade como um predicado diretamente derivado de sua origem divina.
O que era em Plotino a alma do mundo transforma-se em Ficino numa função dinâmica de relação entre todos os níveis de realidade. Pois ele acredita que o universo não é apenas uma gradação de elementos hierarquizados mas concebidos estaticamente. O universo é dinâmico e uno; essa unidade está presente na relação dos níveis de realidade entre si. Ora, quanto a essa relação que unifica o universo, a alma humana desempenha um papel fundamental, pois ela pode pensar todos os níveis de realidade e a comunicação que há entre eles. A alma tem no pensamento uma força que se relaciona com todas as coisas, de Deus até a matéria, passando por ela mesma. Essa atividade faz dela uma espécie de centro do universo; não, evidentemente, no sentido de que todas as coisas dependem dela, mas no sentido em que ela pode pensar e representar a ligação de todas as coisas. É como se, num certo sentido, tudo existisse para a alma, embora seja ela apenas um dos níveis de realidade e nem sequer o mais elevado. Ainda mais, além de pensar todas as coisas, a alma humana mantém com elas uma outra relação, que é a de amor. Ficino é sensível à doutrina exposta no Banquete de Platão, segundo a qual o amor une as realidades. Então, na medida em que a alma estende sua atividade amorosa a todo o universo, ela é fator de unificação, porque é pelo amor dedicado ás coisas que a alma pode representá-las unidas entre si e com a própria alma. A unidade do universo está presente á alma através de suas duas atividades: o pensamento e o amor; ambas vinculam, ou pelo menos testemunham a vinculação dos seres entre si. Nesse sentido o amor fundamenta e expressa a unidade do cosmos, pois é ele que torna reais os elos de ligação que constituem a unidade do universo. E sendo o amor uma atividade da alma humana, isso reforça o papel central da alma individual no conjunto do universo. A dinâmica que anima o universo em sua totalidade está no amor, e portanto na alma, razão pela qual Ficino define a alma humana como o maior de todos os milagres, pois ela tem a faculdade de sentir e pensar a combinação de todos os seres. Ela é a mediação pela qual todas as coisas estão unidas.
Dada essa importância da alma, pode-se imaginar o papel que tem em Ficino a experiência interior, a experiência que a alma pode ter de si mesma e de Deus. Ordinariamente nossa alma está voltada para a exterioridade, porque as coisas nos ocupam e nos absorvem. Mas essa experiência ordinária está sempre penetrada pela inquietude e pela insatisfação. São estes dois sentimentos daquilo que falta à alma que provocam a interiorização, pela qual a alma se afasta do mundo para conviver consigo mesma e desse modo vislumbrar a sua origem, isto é, Deus. Vemos aqui que em Ficino a significação mística do neo-platonismo se encontra com a noção cristã de interioridade espiritual e de alma individual. Trata-se da vida contemplativa, que desde Platão é vista como a meta última do aprimoramento intelectual e moral. Também para Ficino a contemplação é o objetivo máximo do ser humano e a realização plena da dignidade da alma. Ao recolher-se em si mesma desprezando a exterioridade, a alma eleva-se para um plano mais alto de realidade, e fica mais próxima de Deus. Por isso o cultivo da interioridade é uma preparação para o conhecimento de Deus, instância em que desapareceria a inquietude e a insatisfação, pois a alma gozaria de plenitude. De acordo com a vertente mística neo-platônica, Ficino concebe essa plenitude como a visão imediata de Deus. Trata-se de percorrer os graus de ascese que nos conduzem da visão interior de nós mesmos à visão de Deus. Em princípio isso é possível ainda nessa vida: Ficino segue assim o ensinamento de Plotino, que admitia a possibilidade de união mística com o divino no plano da vida humana. Mas de fato essa visão somente ocorre raramente, em condições privilegiadas, por breve tempo e para pessoas excepcionais. Nesse itinerário para Deus, o intelecto e a vontade desempenham papel igualmente importante. Porque assim como o conhecimento de Deus é necessário para que a união mística se realize, o amor de Deus é o impulso fundamental para a elevação da alma. Como toda união é amor, a união com Deus é naturalmente a realização mais completa do amor. A união com Deus é uma experiência em que o conhecimento (o intelecto) e o amor (a vontade) estão indissociáveis. Conhecimento e amor são duas traduções de uma mesma experiência.
O tema do amor é central em Ficino e ele o desenvolve a partir de Platão, especialmente do Banquete e do Fedro. O que ficou conhecido como Amor Platônico é uma idéia própria de Ficino, desenvolvida a partir da introdução de elementos cristãos na noção originalmente platônica de amor. Para Platão o amor de qualquer ser particular reflete o amor da Idéia: se amamos alguém pela sua beleza ou pela sua bondade, amamos através dessa pessoa a Beleza e o Bem. Para Ficino, o amor que sentimos por alguém é sempre, tenhamos ou não consciência disso, uma preparação para amar a Deus. Assim como para Platão a Idéia está presente em qualquer relação amorosa, em Ficino Deus é sempre objeto de amor em todo amor que sentimos por alguém em particular. Por isso ele diz que toda relação amorosa, que ordinariamente concebemos como sendo entre duas pessoas, ocorre na verdade sempre entre três: os dois amantes e Deus. Não haveria amor na relação humana se o amor absoluto não se refletisse no amor singular. Isso significa que o amor na sua significação verdadeira é sempre espiritual: daí deriva a acepção de “amor platônico” como aquele que não necessita realizar-se pela união concreta e carnal das pessoas. Com essa depuração do amor Ficino quer acentuar que se trata de um sentimento que manifesta sobretudo a vontade de elevação interior e que a realidade suprema do amor é de ordem mística.
É por isso que a realização plena do amor, isto é a realização divina do amor, exige a imortalidade da alma. Pois a união contemplativa com Deus só se realizará efetivamente quando a alma estiver realmente presente a Deus. Esse amor é a finalidade da alma; ela não realizaria o fim para o qual está destinada se não fosse imortal. Isso funciona como um argumento em favor da imortalidade: assim como todos os outros seres realizam sempre o fim para o qual estão naturalmente destinados, o homem realizaria o seu fim no plano da imortalidade; caso contrário ele seria o único ser privado da realização do seu fim, o que seria contrário à lógica da criação e à dignidade da alma. Aqui se manifesta também o humanismo cristão característico da renascença. O esforço humano para alcançar Deus, qualquer que seja o resultado obtido nessa vida, não pode ser em vão. O homem que se esmera em ser digno de Deus deve realizar esse objetivo. A imortalidade é necessária para isso; ela está em íntima ligação com a dignidade da alma e da pessoa humana. Porque todos os homens tendem naturalmente para Deus. Sem colocar em dúvida a verdade do cristianismo, Ficino observa no entanto que todas as religiões aspiram, de uma forma ou de outra, ao mesmo Deus. A relação com a divindade é algo intrínseco ao ser humano; pode-se dizer até que é algo inscrito em sua natureza, como se fosse natural ao homem conceber a eternidade como seu princípio e a imortalidade como seu destino.
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